31.3.06

ABSORPTU

Penso em ti, às vezes.
Revejo-te em qualquer lado no vazio do nada quando absorto em coisa nenhuma.
Pensa em mim, às vezes.
Revê-me nas entranhas de um passado presente que outrora nos absorveu e consumiu.


Esperarei por ti, até que todos os sinos por mim dobrem.

24.3.06

PRIMEIRAMENTE

Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo.
Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca – e sempre a tua boca – comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.

(Eugénio de Andrade, in “As Palavras Interditas”)

17.3.06

KLEITORIS

No meio do teu corpo saboreio pausadamente a protuberância carnuda e eréctil. Gemidos tímidos, provocatórios, guturais, soam a sinfonias divinas…
O tempo parou! Absorvo, em êxtase, o néctar que jorra impetuosamente.

Mitiguei a minha (nossa) sede.

10.3.06

FINE

O conceito de rumo é utópico. Na presunçosa suposição hipotética de idealizar um fundamento incerto, consome-se a morte existindo. O marasmo abjecto desta moléstia contagiante gasta-se na ilusão de uma alegria triste, corroída pelo passar implacável da ilusória exuberância de um tempo que foi.

Na tumba, agora sem retorno, jazz um corpo decomposto em vida.

2.3.06

MARE

O mar, antes superfície espelhada de contradições, deixou de reflectir o céu, a lua, o sol… a tua face. Desfeito em mil quartzos hialinos e incolores, num festim orgíaco sem sentido, descubro, apenas e só, “coisas” disformes que outrora reflectiam um todo.
O céu, a lua, o sol… teimam, maquinalmente, a aparecer, julgando preencher uma face que já não existe, existindo.

Da lembrança de um semblante, reinvento um mar espelhado de (in) certezas.